segunda-feira, maio 29, 2006

Tédio

Triiimm. Tocou o despertador. Levantou-se como máquina. Ao seu lado a esposa descansava da incrível noite que não tivera. Ele trabalhava numa sucursal brasileira de uma grande multinacional, no setor de embalagens, e estava na hora de se arrumar para o emprego. Pôs seu uniforme e despediu-se de sua mulher.
Triiimm. Tocou a campainha. Era seu visinho querendo alguma coisa emprestada, acho que o cortador de grama. Emprestou-lho. O visinho cotou-lhe uma piada repetida. Sorriram, como sorriram das outras vezes. O visinho despediu-se e ele saiu de casa, já atrasado para o trabalho.
Triiimm. Tocou o apito da lotação. No caminho do trabalho passava pelos bairros ricos, via o entregador de jornais entregando jornais. Porque gente rica recebia aquelas folhas? Para que se informar das mudanças de cada dia? Afinal os dias são sempre iguais.
Triiimm. O sinal dizia que era hora de trabalhar. Seu trabalho exigia muita criatividade e ele precisava realizar diversos serviços: empacotar, empacotar, empacotar e empacotar. Não podia se queixar, não dava tempo: empacotar, empacotar, empacotar e empacotar.
Triiimm. Tocou a sineta da escolinha publiquinha ao lado. Não tivera a oportunidade de estudar e, como todo dia, escutava encantado os gritos da nobre professora:
-Crianças, vamos conjugar o verbo alienar-se: eu me alieno, tu te alienas, ele se aliena...
- Professola, o que que é “alienar-se”?
- Cala a boca, sua peralta, e continue a se alienar, isto é, a conjugar o verbo alienar-se: nós nos alienamos, vós vos alienais e eles se alienam.
Triiimm. Acabou a primeira aula. Gostaria de saber o que era “alienar-se”. Talvez, se tivesse estudado saberia que essa palavra nada mais significava que o resumo de sua vida, mas que isso importa a você, nobre leitor? Realmente a alienação de um individuo não é do interesse público, pois o público também está alienado. Continuarei então a minha metonímia.
Triiimm.O relógio afirmava ser nove da manhã. Parou o serviço (às escondidas) para beber o seu tradicional café das escapadinhas diárias. Ofereceu-o para seus colegas de trabalho que num gesto corriqueiro recusaram. Máquinas não bebem.
Triiimm. O sinal acusava o início do horário do almoço. Saiu, já que era hora de comer. Não sentia fome, mesmo assim comeu, comeu pela tradição de comer. Todo dia almoçava, aquele não seria diferente. Foi à lanchonete e pediu o prato de sempre. Aproveitou o momento para fitar a moça que o servia, era uma ação recíproca. Já era de tradição fitá-la, posto gostasse de sua mulher e não pensava em traí-la, sentia prazer em admirar a moça. Era uma dose de adrenalina que gostava de ter diariamente para sair da rotina.
Triiimm. Acabava a “aula” na escolinha ao lado. Gritos de criança entravam-lhe à orelha. Voltou a pensar em como seria sua vida se tivesse estudado. Pensava em que seus filhos iriam ter um grande futuro, pois todos estudavam. Talvez eles até soubessem o que significa “alienar-se”. Sempre pensava em seus filhos no horário de almoço, sonhava por eles e se perdia em pensamentos.
Triiimm. O sinal convocava-o novamente ao seu serviço. Era hora de empacotar. Ao olhar ao redor para as máquinas que faziam o mesmo serviço que ele, sentia medo de perder o emprego. Mal sabia ele que também se tornara máquina. Não era movido a eletricidade como as outras, tinha que se alimentar e alimentar as máquinas de sua casa com comida. Era, assim, uma máquina cara e, realmente, corria risco de perder seu emprego.
Triiimm. O relógio tocava três da tarde. Estava empacotando quando o seu chefe passou fazendo sua periódica revista. O chefe o encarava sempre, observava-o trabalhando enquanto fumava seu tradicional charuto cubano. Odiava o cheiro de charuto, mas não reclamava, era de costume agüentar os odores desagradáveis de seu chefe e do resto da burguesia.
Triiimm. O sinal indicava o fim do expediente. Olhou na sua agenda de página única para saber se teria algum compromisso. Nada. Era hora de voltar a sua casa. Despediu-se das demais máquinas e partiu para a rua. Disse adeus à garçonete que o servia o almoço e, como a tradição exigia, deu uma profunda respirada.
Triiimm. Soava o apito da lotação. Voltava para casa enquanto os recolhedores de lixo recolhiam o lixo. No meio desse via-se folhas dos jornais do dia. Não se importava com essa cotidiana cena, sabia que amanhã folhas praticamente iguais a essas seriam recolhidas novamente.
Triiimm. Ele tocou a campainha de sua casa. A mulher ao recebê-lo, ao invés de beijo reclamava de ele sempre esquecer de levar sua chave consigo. Para fugir dessa confusão estava acostumado a tomar seu banho. Tomou. Posteriormente pediu à sua mulher se seus filhos estavam em casa já sabendo que a resposta seria uma negativa. Nunca encontrava seus filhos acordados em casa, quando saía para o serviço eles estavam dormindo, quando voltava a casa eles estavam na rua.
Triiimm. Tocou a sinta da bicicleta do protagonista da novela das sete. O leitor deve ter achado o início desse parágrafo uma apelação minha para manter o meu estilo. Fique sabendo, meu amigo, que um brasileiro passa grande parte de sua vida em frente ao televisor, destarte nada mais normal que grande parte das onomatopéias por eles ouvidas tenham sua origem na televisão.
Triiimm. Continuou a bicicleta. A esposa o convidou para o jantar já sabendo que ele pediria para ela esperar acabar a novela e começar o jornal. Não era costumeiro o ato de assistir o jornal naquela casa. Durante o jantar comia sua apetitosa refeição de costume e escutava seu CD do rei Roberto Carlos.
Triiimm. O visinho tocava a campainha. Queria devolver o objeto emprestado naquela manhã e agradecer o favor. Então pediram ao visinho para contar uma piada.
- Não lembro mais nenhuma, respondeu-lhes.
- Então conta de novo aquela que você contou de manhã.
Triiimm. Após o visinho contar a piada da qual todos riram e partir, o juiz de um jogo de futebol apitava início de jogo na tevê. Estava vendo os craques jogarem quando a esposa lhe convidava para o prazer. Pediu-lhe para esperar o fim do jogo.
Triiimm. Acabava o primeiro tempo. Parou para fazer “uma boquinha” de costume e voltou à tevê para ver o segundo tempo do jogo que estava empatado. O atacante marcou um gol nos últimos minutos. O futebol mais uma vez serviu de distração para acalmar e manter quieto um trabalhador cansado.
Triiimm. Apito final do jogo, resultado: um a zero. Foi à cama para cumprir a promessa à mulher. Porém, enquanto ela colocava uma roupa bem erótica, ele dormiu. A mulher,já acostumada com o dormir do marido e sentindo pena e decepção, deixou-o descansar.
Triiimm. Tocou o despertador. Levantou-se como máquina. Ao seu lado a esposa descansava da incrível noite que não tivera. Trabalhava numa sucursal brasileira de uma grande multinacional, no setor de embalagens, e estava na hora de se arrumar para o emprego. Pôs seu uniforme e despediu-se de sua mulher.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home